Arquitetura de escolhas para doação de órgãos no Brasil: salvando vidas com um bom default
Uma pergunta. Uma resposta. Três letrinhas. Vidas que podem ser salvas. Você é doador de órgãos? Você deseja doar os órgãos de seus familiares se um dia a situação se apresentar? Já parou para pensar sobre isso?
Se você nunca pensou, relaxe. Você não é o único. A verdade é que o tema doação de órgãos é infelizmente um tema pouco abordado no Brasil, e ainda de forma inconsistente. Uma campanha aqui, uma reportagem acolá. A fila de espera por um órgão no entanto, não tem nada de inconsistente. Só no ano passado de acordo com o Registro Brasileiro de Transplantes (ABTO, 2015) haviam 31.915 pessoas, entre adultos e crianças, na fila de espera por um órgão. Só em São Paulo, 500 crianças constavam na lista.
São pessoas que não podem mais contar com nenhum remédio ou tratamento. Sua chance de viver é ser transplantado. E os números mostram que infelizmente, poucas pessoas tem essa sorte: só 2634 pessoas receberam o órgão que esperavam no ano passado no Brasil. Mas tirando o drama e a empatia que o tema nos acende, não são esses números que mais incomodam. Na verdade por esses temos que comemorar. Essas 2634 pessoas voltaram para suas vidas.
Os números de 2015 sobre os quais realmente devemos nos debruçar são estes: 2613 famílias recusaram doar os órgãos de seus familiares (taxa de 44% de recusa), e 2397 pessoas morreram esperando um órgão. Não pretendo discutir a decisão individual ou familiar de ninguém. Cada um tem o direito de fazer aquilo que acredita ser o certo e de ter suas preferências respeitadas, mas e se pudéssemos de uma forma fácil, simples, quase automática, elevar o número de doadores no país sem desrespeitar a liberdade individual de ninguém?
Sim, nós podemos. E para isso precisamos apenas analisar as regras do jogo no que se refere à doação de órgãos no Brasil, à luz de alguns conhecimentos da Economia Comportamental. Enquanto o Brasil teve em 2015 uma taxa de doação na ordem de 66% (isso significa que 66% das famílias consentiram a doação de órgãos), diversos países apresentam uma taxa de consentimento estimada de 99% (Áustria, Bélgica, França, Portugal, Hungria e etc) (JOHNSON E GOLDSTEIN, 2003). Afinal, o que acontece nesse países? Um estudo interessantíssimo da Science revelou que o que basicamente muda nesses países é que a regra pré-definida (também conhecida como “default option” em Economia Comportamental) para a decisão de doação é diferente.
No Brasil, nossa regra pré-definida ou opção padrão (default option) é que ninguém é doador e, se você quiser doar os órgãos, você ou sua família precisam consentir explicitamente isso (consentimento informado). Já nesses países a opção inicial é que todos são doadores e, se você NÃO quiser doar, você ou sua família precisam NÃO consentir explicitamente isso (consentimento presumido). A liberdade de escolha em nenhum dos dois casos foi comprometida e as pessoas continuam podendo se expressar, então porque uma simples mudança da regra pré-definida faria tanta diferença?
Estudos em Economia Comportamental mostram que as pessoas tem uma tendência a se manter com a regra inicial ou pré-definida por pura inércia. Tomar decisões é cansativo, demanda energia. Pesquisadores também relatam que muitas pessoas podem enxergar a regra pré-definida como uma sugestão implícita, um curso de ação a ser tomado. Além disso, existe um certo status quo por detrás de uma regra pré-definida. É como se ao invés de ouvir a pergunta: “você deseja doar?”; você ouvisse: “você não deseja doar?”. Perceba, é sútil, mas faz toda a diferença.
A maioria das pessoas no fundo prefere nem encarar uma decisão num momento estressante emocionalmente como o da perda de um ente querido (e talvez nem tenha recursos emocionais e cognitivos para isso mesmo). Nesse momento, se manter com a decisão pré-definida ainda que não revele suas preferências é a opção menos custosa e de menos risco. Desse modo, muitas famílias acabam não doando, por não terem tido tempo de realmente refletir sobre a questão previamente e por simplesmente nem quererem pensar no assunto no momento.
Uma evidência disso são os dados encontrados num estudo brasileiro inédito com famílias de doadores e não doadores um ano após a decisão: apenas 33% dos não doadores e 66% dos doadores afirmaram que fizeram uma escolha consciente; e 25% das famílias declararam explicitamente que não respeitaram a decisão do falecido (as entrevistas foram realizadas com o parente responsável diretamente pela decisão da doação). (MORAES et al, 2009).
O experimento online de Johnson e Goldstein com 161 participantes encontrou o seguinte resultado: simplesmente mudando a opção inicial de “não doador” para “doador”, a taxa de disposição a doar passou de 42% para 82%, revelando o poder da inércia no comportamento humano. É um aumento muito significativo, e mais importante, pode significar salvar vidas.
Para Richard Thaler e Cass Sunstein, dois importantes economistas comportamentais, o poder da inércia e da opção pré-definida (default option) ficam claros no comparativo entre a Aústria e a Alemanha. Apesar de serem países semelhantes, na Alemanha onde a regra inicial é não ser doador, as taxas de consentimento são de 12%, enquanto na Áustria onde a opção inicial é ser doador, as taxas batem os 99%. E tais diferenças se mantêm mesmo controlando variáveis como religião, condição econômica e educacional dos agentes, o que vem a reforçar a tese de que o default tem desempenhado um papel importante nessa decisão. (THALER e SUNSTEIN, 2008).
Em Economia Comportamental acreditamos que podemos arquitetar o ambiente da decisão de forma a contribuir para que melhores resultados apareçam (elevação de bem estar), sem que a liberdade de escolha ou o livre arbitrio das pessoas seja prejudicado. Por exemplo, sabemos que se colocarmos cenouras ao invés de batatinhas fritas na altura dos olhos das crianças nas lanchonetes das escolas, conseguimos fazer com que mais crianças escolham cenouras. No fundo, quem quer muito batata frita continua podendo pedir a batata frita, mas é bacana pensar que com uma mudança tão simples podemos ajudar as crianças a ter uma alimentação mais saudável.
A opção pré-definida (default) é outra grande ferramenta que temos para arquitetar o ambiente de uma escolha. Já conseguimos elevar as poupanças das pessoas em empresas que oferecem planos de poupança internos mudando, entre outros, a opção inicial de “não participo” para “participo”, sendo que a pessoa é questionada se deseja cancelar a opção no momento de sua contratação e pode a qualquer momento pedir para sair do programa no próprio RH (THALER e BERNATZI, 2004). Essa é mais uma evidência do poder da inércia no comportamento humano, exatamente como acontece com o caso da doação de órgãos.
No caso da poupança, a justificativa para um desenho de arquitetura é que muitas pessoas alegam que gostariam de estar poupando mais do que estão, mas parece faltar algo para que elas consigam efetivar o próprio plano. A arquitetura é um empurrãozinho (nudge), e não impede que aqueles que não querem poupar tenham suas preferências respeitadas. Compreendemos que um plano ou uma arquitetura só é “libertária” (preserva a liberdade de escolha do agente) se for bem fácil sair da opção pré-definida.
E é exatamente isso que acontece no contexto da doação de órgãos em países que trabalham com o default “todos são doadores”. Basta a família sinalizar que não deseja a doação para sua equipe médica ou o indivíduo ter sinalizado em vida sua decisão, que sua vontade é respeitada. Assim como no Brasil, as famílias que desejam doar precisam apenas informar a equipe médica após falecimento.
A verdade é que uma melhor arquitetura de escolhas para a doação de órgãos no Brasil não só provavelmente aumentaria as taxas de doação e salvaria milhares de vidas, mas principalmente impediria que tantas famílias tivessem que encarar essa decisão díficil num momento tão doloroso. Famílias que não são doadoras ou não desejam doar por questões ideológicas, religiosas, entre outras, muitas vezes não tem uma decisão a ser tomada, mas uma preferência a ser informada, porque em geral a maioria dessas famílias já conhece sua posição antecipadamente. No entanto, as decisões que podem ser mudadas são justamente as daquelas famílias que nunca pararam para pensar, e não tendo condições de decidir na hora, acabam não doando influenciadas pelo default.
Um relatório americano bastante amplo sobre o tema, explica que as organizações de fornecimento de órgãos e equipes de hospitais podem abordar as famílias de uma forma bastante distinta num sistema de consentimento presumido: como os familiares de um “doador” e não como os familiares de um “não doador”. Segundo Childress e Liverman (2006) essa simples mudança pode facilitar a aceitação da doação de órgãos por parte dos familiares e assim elevar as taxas de doação.
A experiência de outros países, conjuntamente com as pesquisas comportamentais, explicitam como podemos de forma simples usar um bom default para devolver a vida a quem luta por ela, e assim salvar milhares de brasileiros, crianças e adultos. Salvar vidas. Salvar sonhos. Salvar histórias. Esperar na fila por um órgão não é fácil, mas é possível mudar esse jogo.
REFERÊNCIAS
JOHNSON, E.J.; GOLDSTEIN, D. Do Default save lives? vol. 302 p.1338. 2003.
CHILDRESS, J.F. LIVERMAN, C.T.. eds. Organ Donation: Opportunities for Action. The National Academic Press. 2006.
MORAES, B. N.; BACAL, F.; TEIXEIRA, M.C.T.V.; FIORELLI, A.I.; LEITE, P.L.; FIORELLIi, L.R.;
STOLF, N.A.G.; BOCCHI, E.A. . Behavior Profile of Family Members of Donors and Non donors of Organs. Transplantation Proceedings, v. 41, p. 799801, 2009.
ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos). Disponibiliza dados trimestrais e anuais sobre transplantes no Brasil por meio da RBT (Registro Brasileiro de Transplantes). Disponível em http://www.abto.org.br/abtov03/Upload/file/RBT/2015/anualnassociado.pdf – Acesso em 25 de fevereiro de 2016.
THALER, R.; SUNSTEIN, C. Nudge: o empurrão para a escolha certa. 2008
THALER, R.; BERNTAZI, S.. Save more tomorrow: using behavioral economics to increase employee saving. Journal of Political Economy, CXII. p.164187. 2004 .
Maria do Carmo Nery
Concordo que todos devam ter sim a opção de escolha, mas essa escolha pode e deve ser feita antecipadamente, num momento sem stress. Esta simples mudança de conceito, salvaria muitas vidas. O Brasil precisa mudar alguns conceitos trazendo benefícios muitas das vezes desconhecidos pela grande maioria.
Excelente trabalho, Patrícia. Precisa ser implementado….Beijos
khayo
gostaria de usar esse artigo na min ha monografia, posso?